terça-feira, 10 de maio de 2011


Brevíssima reflexão sobre lição de casa


Flávio Boleiz Júnior

Pedagogo

Como seria um mundo verdadeiro? Podemos ter uma idéia vaga: seria um mundo em que as pessoas pudessem se relacionar entre si como pessoas e não como coisas, um mundo em que as pessoas pudessem decidir sua própria vida. John Holloway

     É a partir dos objetivos que são traçados institucionalmente para a educação escolar que se pode definir e encaminhar o planejamento das lições de casa para os alunos, desde os cursos de Educação Infantil até o Ensino Médio. 
     Parece consensual, entre os diferentes segmentos sociais — inclusive aqueles que compõem os quadros docentes —, que a escola se preste ao papel de agente socializador. Tanto é assim que Peter Berger e Luckman (1980) afirmam que cabe à escola dar continuidade ao processo de socialização que, primariamente, iniciou-se no ambiente familiar.

     Contemporaneamente os papéis dos membros familiares vêm assumindo configurações que, além de apresentarem-se numa forma organizacional muito diferente do paradigma tradicional — “papai, mamãe e filhinho(s)” — dispõem de muito pouco tempo para dedicação à complementação do processo educacional oferecido aos membros das novas gerações. A realidade que se desvela daí aponta à escola a necessidade de se reorganizar visando à satisfação das novas necessidades sociais, dentre as quais podem-se destacar: a formação para a cidadania, o desenvolvimento da autonomia, a preparação para o trabalho.

     Ao observarem-se as relações entretecidas entre os objetivos da educação escolar e seus fazeres reais do dia a dia, salta aos olhos a importância que a escola dá à questão da preparação profissional, em contraposição aos objetivos didático-pedagógicos. Essa opção representa resquícios de influência dos objetivos escolares idealizados durante as décadas de 1960 e 1970, quando se propugnava uma educação de formação profissional, como ideal para a sociedade brasileira, que precisava se desenvolver e auxiliar o país a elevar-se das fileiras formadas pelas nações consideradas “subdesenvolvidas”. A Lei 5.692/71, LDB — Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional outorgada pelo regime militar —, estabelecia claramente essa preocupação em vários de seus artigos (4º, 5º, 25, 26; dentre outros).

     Ao tomar a preparação para a vida profissional — especialmente tendo-se como pano de fundo o modo de produção capitalista — como objetivo cardeal dos fazeres escolares, acaba-se por priorizar os conteúdos, de acordo com uma concepção bancária de educação (FREIRE, 2002), em detrimento dos valores sociais e morais e dos próprios educandos como sujeitos do processo educativo. Afinal de contas, a moral e a ética, que se estabelecem como norteadoras das relações entre os sujeitos sociais, passam a ser aquelas derivadas da lei de mercado — da oferta e da demanda —, que propiciam uma como que “naturalização” de relações sociais que se dão não entre pessoas, mas entre mercadorias. Valores éticos e sujeitos ou conteúdos e mercadorias representam, aqui, uma questão de opção político-pedagógica.

     Escolher os conteúdos em detrimento dos valores éticos é fazer a escolha pelo mercado: “ter” muito conteúdo passa a ser mais importante do que “ser” um cidadão respeitador dos direitos alheios e sujeito dos seus próprios. É por isso que a eleição dos conteúdos como os objetivos mais elevados do processo educacional acaba por determinar um modo docente de se trabalhar desencadeante de todo um habitus profissional (na concepção de Bordieu), que se rege pelo estabelecimento de cobranças quantitativas como meio de se tentar atingir qualidade entre os educandos; de estimular a concorrência e a competição entre colegas como modo de prepará-los para o mundo lá de fora, já que mesmo envoltos nessa realidade consumista e competitiva, os educadores ainda preservam a ilusão de que haja um “dentro” e um “fora”; aliás, “aqui dentro” e “lá fora”, na relação entre a escola e o mundo.

     A LDB atual — Lei 9.394/96 —, diferentemente de sua antecessora, traz em seu bojo uma aparência muito mais progressista quando opta pela expressão “vinculação ao mundo do trabalho”. Diferentemente de “educação profissional”, que se liga especificamente à acepção de “mercado de trabalho”, “educação para o mundo do trabalho” diz respeito, de maneira muito mais progressista, à condição de humanidade, que é papel da educação escolarizada oferecer aos estudantes. Trabalho, afinal de contas, é meio para transcendência da natureza e transformação objetiva das condições materiais que propiciam ao homem a característica que lhe diferencia dos demais seres naturais, a condição humana.

     Detenhamo-nos um pouquinho na reflexão acerca destas idéias sobre trabalho e condição humana.

     Ortega y Gasset, em sua “Meditação da técnica” (1963), afirma que os homens conquistam sua condição de humanidade na medida em que não se mantém indiferentes diantes da natureza e, por meio da técnica — atividade adequada a fins específicos —, transcendem sua imposições que necessariamente se colocam a todos os seres vivos.

     Nesta perspectiva, o trabalho é categoria essencial para a constituição da condição humana, já que na concepção marxiana trabalho é, exatamente, “atividade adequada a um fim” (MARX, 1983) e somente os seres humanos são capazes de propor finalidades prévias a seus fazeres.

     Desde este ponto de vista, a opção por uma formação vinculada ao mundo do trabalho representaria um processo educativo adequado ao papel de socialização da instituição escolar, já que abrangeria, num único golpe, todos os seus principais objetivos. Educar com foco na formação para o trabalho assumiria o significado de educar o homem para que se tornasse humano de fato; representaria preparar o educando para identificar, planejar e realizar diferentes modos de superar as barreiras “naturais” do cotidiano.

     Por outro lado, o que se vê no mundo regido pelo modo de produção capitalista, ao se falar de formação profissional, é muito diferente do que se projeta a partir do ponto de vista até aqui abordado.

     É lugar comum, na contemporaneidade, a apropriação e resignificação de certos termos historicamente construídos pela humanidade, por parte dos representantes das ideologias neoliberais, com óbvio desvio tendencioso de seu sentido histórico na tentativa de atribuição de uma aparência legítima a seus objetivos reais. Dessa forma o que outrora se nomeava “educação profissional” vem sendo tratado, ultimamente, como se fosse “educação para o trabalho”, subvertendo-lhe o significado em benefício dos interesses das classes dominantes. Por esta via, aqueles “velhos” ideais desenvolvimentistas que muito influenciaram a educação nas décadas de 1960 e 1970, renovam suas forças e, travestidos por palavras velhas que emolduram novos jargões, restabelecem-se num movimento de fortalecimento dos mesmos ideais liberais — agora superdimensionados — que se constituem em combustível de impulsão do capitalismo.

     De certa maneira, a partir destas brevíssimas reflexões, já é possível vislumbrar quais são os ideais que se delineiam por traz do modo de trabalho que orienta os fazeres didático-pedagógicos das diferentes instituições escolares a partir da observação das lições de casa de seus estudantes. Em poucas palavras — pouquíssimas mesmo — pode-se perceber o envolvimento com uma ou outra concepção de “educação para o trabalho” com uma simples constatação da quantidade de lições de casa e tarefas extra-escolares (sem perder de vista a qualidade, é óbvio) que cada instituição encaminha para seus educandos cotidianamente.
 

     Afinal de contas, pra que é que serve, exatamente, a lição de casa?

     E mais: se é legítimo o aluno levar tarefas da escola para fazer em casa (lição de casa), não seria igualmente legítimo o aluno levar tarefas de sua casa para realizar na escola? Bem posso imaginar o que os professores pensarão a respeito desta ideia!


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

BERGER, Peter. Socialização: como ser um membro da sociedade, In: FORACCHI, Marialice Mecarine & MARTINS, José de Souza.(Orgs.) Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1980. 
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 23. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002.
MARX, Karl. O capital – Crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.

FONTE: http://blog.forumeducacao.zip.net/

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