Recebi a seguinte carta, que respondi em conformidade com o que se segue abaixo.
Caro Professor
Meu nome é ……. e eu sou mestranda em Educação pela Universidade……. Utilizei-me de seu livro sobre Filosofia da Educação como suporte de um capítulo sobre a filosofia e a ideologia da e na educação. A sistematização, que fiz, da função social da escola — de como ela é vista pela sociedade (redenção, reprodução e transformação) — foi criticada pelo meu orientador, que entendeu que o termo “redenção” seria, de certa forma, um termo jocoso. A minha questão é: redenção e transformação não acabam se encontrando com um mesmo sentido? O senhor vê na sociedade (tirando os artistas e os jogadores de futebol), alguma chance de emancipação social sem a educação?
Obrigada, espero que me tenha feito entender…
As categorias sociológicas redenção e transformação, como meta final, aparentemente, dirigem-se para a mesma direção — a emancipação do ser humano. Porém, cada uma delas entende a emancipação de formas diversas. A visão redentora acredita na possibilidade de “salvar a humanidade” de suas mazelas, de suas fragilidades, de seus “pecados”, aqui, a educação é uma entidade externa à vida social. Já a visão transformadora vê a emancipação do ser humano como um caminhar para a sociedade igualitária, onde todos possam viver em condições de igualdade; aqui, a educação é uma das forças internas à trama das relações que constituem a vida social e histórica. Desse ponto de vista, essas cosmovisões são completamente diferentes, até mesmo opostas — uma coloca a educação como um fenômeno externo e soberano à vida social e a outra coloca a educação como um componente interno à vida social, sendo, ao mesmo tempo, determinado por ela e determinante da mesma. O fenômeno da educação é determinado pelas múltiplas determnações da realidade, contudo, no embate das forças presentes, ela também determina o movimento na medida de sua capacidade de interferir no processo.
O termo redenção, no caso, expressa uma categoria sociológica, que explica uma cosmovisão educativa. Uso o termo categoria, em conformidade com o uso feito por Marx, ou seja, como uma explicação da realidade. Aliás, esse também foi o uso feito por Dermeval Saviani no livro Escola e Democracia, Cortez Editora, e por José Carlos Libâneo, no livro Democratização da escola pública, Edições Loyola, quando abordam a educação tradicional como rendentora..
No caso, então, o termo redentora expressa uma categoria sociológica salvacionista, ou seja, é a compreensão daqueles que, consciente ou inconscientemente, crêem que a educação tem o poder de administrar a vida social com todos os seus sucessos e insucessos (nesse sentido, “salvacionista”) e atuam como se a educação pudesse redimir a todos, possibilitando uma sociedade equilibrada e saudável. A expressão educação redentora é tomada no sentido de compreender que há um recurso que redime a todos. Essa é a crença que está como pano de fundo da pedagogia tradicional. Os educadores tradicionais acreditavam e acreditam que a educação é a força que dá direção à vida social. Ela está acima da vida social.
Já a pedagogia transformadora tem como pano de fundo o entendimento de que não há uma força redentora (acima e fora da vida social), mas sim uma dinâmica de contradições sociais, que produz o movimento social. Marx nos lembra que o movimento social se faz pelas contradições de seus diversos e variados segmentos, assim como pelas contradições entre suas forças em ação. Ele tem a expectativa de que o ser humano, social e historicamente constituído, um dia, chegará ao equilíbrio, onde cada um “dará segundo sua capacidade e onde cada um receberá segundo sua necessidade”, ou seja, uma sociedade igualitária entre os seres humanos, onde todos podem viver de modo satisfatório, em pé de igualdade. Neste olhar político-pedagógico, não há uma redenção, mas sim um movimento das forças sociais em direção à emancipação do ser humano como individuo e como coletividade, como necessidade do ser humano. A educação é, então, uma das forças sociais em movimento, que se encontra dentro da sociedade (equivalente a todas as forças constitutivas da vida social), não acima dela, como se daria numa cosmovisão redentora.
Na visão “redentora”, a educação coloca-se acima da vida social e será ela a salvar (redimir) a sociedade de seus desequilíbrios, o que é um desejo que não se sustenta frente a uma análise consistente da vida social. Na cosmovisão redentora, há um redentor que salva (no caso a educação); na cosmovisão transformadora, o movimento social emancipatório se faz pelo embate das forças sócias atuantes. Daí que os defensores de uma visão transformadora assumem que a prática educativa deve ser realizada com o maior investimento possível, para, com tal força, no embate das relações sociais, se processe a mudança emancipatória do ser humano, individual e coletivo.
A cosmovisão transformadora exige dos sistemas de ensino, mas especialmente, dos educadores — de modo individual, mas especialmente de modo organizado — um engajamento no investimento por uma sociedade igualitária e a contribuição da educação será formar, da melhor e mais atual forma possível, as crianças, os adolescentes e os adultos, com os quais trabalha. Daí, então, a necessidade de um planejamento consistente e politicamente comprometido do ensino, o que implica numa execução e numa avaliação da aprendizagem comprometidas com os mesmos ideários.
Marx nos lembra que uma concepção não vai à prática sem múltiplas mediações e as mediações pedagógicas são: o planejamento consistente, sua execução consistente e uma prática avaliativa efetivamente avaliativa, ou seja, subsidiária (a serviço) dos resultados efetivamente desejados, diversa de uma prática examinativa, que é seletiva e discriminadora.
Ultrapassando a explicação dos termos que você me solicitou, pessoalmente, opto pela cosmovisão transformadora, pela qual a educação é uma força presente na trama constitutiva da vida social. A meu ver, devemos colocá-la a serviço do ser humano, individual e coletivo, na busca de sua emancipação, ou seja, na busca da igualdade de condições de vida para todos, por dentro da própria vida social e não por fora dela. Seres humanos educados constituem uma sociedade educada. Isso tem uma dupla via — quanto mais os seres humanos individuais se educam, temos uma sociedade mais educada e, quanto mais tivermos uma sociedade educada, mais teremos seres humanos individuais educados. Ocorre uma dialética entre esses fenômenos, um não vem antes do outro nem um é mais importante que outro. Ambos são importantes.
Salvador, 30 de junho de 201
Cipriano Luckesi
http://luckesi.blog.terra.com.br/2010/06/30/sociedade-redencao-e-transformacao-em-educacao/
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