sábado, 26 de novembro de 2011

Educar é criar


Bianka Barbosa Penha
Editora do Dicionário de Poética e Pensamento

 

Primeiras palavras...

Apesar das tentativas de ruptura com o tradicionalismo conservador, a educação – ou, melhor dizendo, o sistema escolar do qual fazemos parte – permanece insatisfatória.
Para que possamos refletir a esse respeito, é necessário perceber de que maneira a educação é não só compreendida mas experienciada há séculos, tanto pelos componentes do corpo docente e administrativo quanto pelos alunos. É fundamental que nos lancemos nas seguintes questões: o que é educação? O que significa educar? Qual a verdadeira relação estabelecida entre professores e alunos no processo de ensino-aprendizagem? É realmente possível ensinar algo a alguém? O que entender por ensino? Ensino é apenas a transmissão e apreensão de conteúdos e regras a serem assimiladas e passíveis de aplicação? É nisso que está concentrada a tão preocupante qualidade do ensino?
Antes, porém, de aprofundarmos nossa conversa, vejamos claramente a maneira pela qual há séculos legitimamos o fazer educativo.

Cartilha do bem ensinar

Pegue seu aluno e coloque-o em uma sala. Durante quatro horas, sem interrupção, informe-o a respeito de todas as frivolidades presentes na Física, na Matemática, na Língua Portuguesa e nas demais disciplinas. A condição para que o efeito seja o esperado é que toda essa informação não signifique absolutamente nada nem para ele nem para você, professor. Permaneça assim durante doze anos, tempo básico de permanência de um aluno no ambiente escolar. Com o tempo, tomado pelo tédio e pela falta de perspectiva, o aluno estará pronto em erudição, ou seja, adequadamente modelado para fazer parte de nosso círculo social.
Sabedor de todas as diferentes formas de aniquilamento, tanto teóricas quanto práticas, ele poderá enfim nos substituir. Para tanto é necessário que nós, “educadores”, evitemos refletir a respeito de determinadas questões. Caso o façamos, sejamos bastante evasivos e nos embasemos nas técnicas retóricas utilizadas para o convencimento das massas. Assim, conseguiremos alcançar o objetivo proposto: a falência gradual do humano e, consequentemente, da sociedade, a fim de que sejamos condizentes com as exigências previstas nos códigos de ética.

Iniciando a conversa

Apesar da aparente loucura, é exatamente assim que o ambiente escolar tem sido figurado. Em meados de 1630, Comenicus já lançava tais perguntas diante da falência educacional, enraizada há mais de cem séculos anteriores ao dele. Ainda assim, passado tanto tempo e sabedores de todo o percurso pelo qual a educação vem passando, perpetuamos a falência do humano, espinha dorsal do processo de ensino-aprendizagem que fabricamos. Afirmo “fabricamos” porque a relação é exatamente essa: sujeitos que, condicionados, fabricam objetos também modeláveis e modelados para o bem da fábrica. É lamentável, mas o fato é que essa é a escola que nos forma.
Formar não é entendido aqui como uma ação que conduz para a participação crítica do indivíduo com o mundo que o cerca, mas a prática aniquiladora de coerção do pensar e do sentir de grande parte dos homens que passam, passaram ou passarão pelos bancos escolares.
O tradicionalismo conservador se alimenta atualmente da inversão do significado trazido pela Escola Nova ao proclamar erroneamente o olhar centrado no aluno. Ou seja, baseados na vontade de pais e alunos, confundimos educar com domesticar para o mercado de trabalho. Não há diálogo, mas apenas inversão do monólogo iniciado pelo tradicionalismo que pregava o umbigo do professor como o centro do universo. Como hoje os alunos passaram a ser rentáveis consumidores de saberes e a escola uma mera prestadora de serviços, o umbigo da vez é o dos alunos. E assim, contrário ao pensamento que nos convoca a perceber a importância de proporcionar o desenvolvimento crítico não só dos alunos mas de nós, professores, empreendemos a produção em série de alunos clientes, consumidores de provas, testes e trabalhos vazios de significação. A excelência do ensino, confundida com a burocratização do ato de ensinar, faz-nos acreditar que o fundamental se concentra no “crédito cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra” (Alves, 1980, p. 13).
Passamos grande parte da vida estudando, seja como professores ou alunos, e na maioria dela o que aprendemos e ensinamos com alegria está fora da escola. Costumo dizer que, se antes havia os métodos clássico-tradicionais de tortura, como a palmatória ou o ajoelhar no milho, atualmente fazemos uso dos métodos tecno-pós-modernos: coleção de uma erudição informativa que, sem significação humana, joga o homem como um abutre na caverna estéril, com sombras projetadas em seu fundo, simulacros daqueles que, por se acharem livres, permanecem também ali, presos. Embebidos na ignorância, diplomada ou não, sequer damos atenção à luz que insiste em atravessá-la. Se tivéssemos a coragem de segui-la, talvez reencontrássemos o sentido original de educar.
Dessa forma, “sentido original” não pode ser entendido como mera novidade, mas como a radicalidade que nos conduz, como o próprio nome já diz, à raiz de nós e do mundo. Neste momento, alguns podem pensar: talvez as teorias evolucionistas ou as formulações biogenéticas nos ajudassem a chegar à explicação de que precisamos para alcançar a tal da origem. Proponho, no entanto, a reflexão acerca da seguinte questão: de que palavras nos alimentamos? Quais palavras damos em alimento? Pensar a palavra significa nos encaminhar para a radicalidade presente em todo e qualquer ato de educar.

Educar é ser palavra

Nesse sentido, a palavra não pode ser entendida apenas como código linguístico a ser apreendido como condição para a aceitabilidade social, pois, se for assim, devemos então assumir de uma vez por todas a parceria da ação educativa com os ditames de regimes preconceituosos, que nos impelem a utilizá-las como instrumento de segregação entre os homens. Do contrário, se atentarmos para sua etimologia, veremos que “palavra” se origina do verbo grego paraballein, a saber, lançar no entre. Isto é, a palavra é um convite para nos lançarmos no entre que somos enquanto professores, alunos e vida.
É o reaprender a falar que nos possibilitará o retorno à capacidade de ser todo ouvidos, ou seja, palavra. Assim como o educar, a palavra também é diálogo, isto é, o ético – sangue humano – presente em nós e em nossos alunos. Educar é ser palavra, e ser palavra é ser presença no mundo.
O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa condição em face do mundo que não é a de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem nele se adapta, mas de quem nele se insere (Freire, 1996, p. 54).
Compreender o “ser presença no mundo” implica reconhecer que a educação é inclusiva. Nesse sentido, a inclusão remete para a singularidade constituinte de cada indivíduo, ou seja, trata-se de uma nova proposta de olhar. Ora, se a cultura possibilita o desenvolvimento e a aprendizagem do indivíduo, então é necessário que a escola esteja atenta para as diferentes culturas que a compõem. E mais do que isso: deve atentar para o fato de que o aluno é também um ser histórico, com dificuldades e conquistas próprias. Significa incluir a diferença como cerne do processo de aprendizagem, principalmente porque com ela nos abrimos para o fato de que cada aluno é único e insubstituível.
Quando um poeta seleciona uma palavra e a coloca em seu poema, não é feito de maneira aleatória. Há todo um cuidado com ela, pois diante dela ele pode ouvir suas origens. Sendo assim, ao nos colocarmos diante de um poema, não podemos desconsiderar ou generalizar uma palavra sequer, pois cada uma é única. E, diante do poema, nós, leitores, também somos convocados a ouvir a voz de nossas origens. Assim é uma sala de aula. Um grande poema convidando a lê-lo. Cada aluno-palavra é único, compondo a música de nossas origens, pois não nos esqueçamos: também um dia fomos alunos. Perceber isso é reconhecer o ético.
Compreender a aprendizagem como processo de inclusão implica uma abertura para o caráter ético da atuação educacional, pois, para além da moral, o ético é o único caminho que nos possibilita lançar esse novo olhar.
Daí a incoerência dos conteúdos educacionais dissociados da palavra. A institucionalização do ético gera a síndrome do trabalho vazio em todas as áreas. Pois o caminho afastado das experiências de quem o percorre é apenas uma proposta ilusória de tracejo, pois, em verdade, ele só pode acontecer quando nos lançarmos com ele na caminhada, quando tivermos a ousadia de ser a palavra que nos habita como pensamentos e gestos próprios e permitirmos que o nosso próximo seja conosco.
Deixemos de lado todo o otimismo pessimista ou, quem sabe, todo o pessimismo otimista que assola a educação há tempos. Pensemos com profundidade: de que vale a vida? Talvez encontremos uma “resposta” para a situação na qual nos encontramos.
Atualmente banalizada, tal questão virou tema de autoajudas que feliz ou infelizmente não conseguem alcançá-la, pois perguntar por si mesmo ou pela vida não requer uma série de aparatos psicologicamente comprovados como eficazes, mas apenas escuta. Escuta não daquilo que pensamos ser a coisa ou do que temos vontade de ouvir, mas dela mesma. Nesse sentido, afirmo que a humanidade não existe, pois se realmente existisse todos os conceitos criados para caracterizá-la seriam experienciados por todos, da mesma forma, em todas as épocas. Daí porque não haver sentido em uma educação ou sistema educacional que fundamente sua ação na adaptação para o social.
Educação não é apenas uma das áreas de atuação profissional oferecidas pela sociedade, mas o agir genuinamente criativo que a possibilita junto com todas as outras áreas. Educar é criar; sendo assim, mais do que modelarmos socialmente os alunos, o educar nos convoca para a criação da sociedade que vislumbramos, mas não temos.
Ora, é mais do que sabido que a escola é hoje um dos maiores centros de formação para a violência e a hipocrisia. Todos os anos, com empenho assustador, retiramos dos alunos a possibilidade de reversão da precariedade social em que, na maioria das vezes, se encontram. É vergonhoso e preocupante, mas parece que a escola funciona há tempos em regime de castas, onde uma não pode ter respeito com a outra, sob pena de condenação eterna. Diante disso, qual o lugar ocupado pelo humano?
Ser humano é ser junto. É necessário negar a afirmação liberticida de que “a minha liberdade acaba quando começa a do outro”. A minha liberdade acaba quando acaba a do outro; se algum humano ou humana não é livre, ninguém é livre (Cortella, 2002, p. 156).
A liberdade, abertura para o “ser livre”, implica viver de i-mediato aquilo que se ensina e se aprende. Ou seja, experienciar sem o auxílio de mediações o que se é. A isso damos o nome de disciplina, a saber, o compromisso de ser. Nesse sentido, o professor não pode ser visto como apenas um mediador ou facilitador da aprendizagem, mas antes um complicador. Educar não é saber dar as respostas certas, mas convocar para o interior das questões, reaprendendo a desaprender (cf. Pessoa, 2007, p. 64). Sair dos paradigmas e das conceituações prévias que nos fazem perder tempo com explicações repletas de desamor a respeito do homem, do mundo e da vida.
A ilusão do professor é realmente acreditar que o aluno é uma tela em branco, na qual ele, o grande artista, fará a sua mais notável obra. Ora, o que ocorre é justamente o contrário e independe da vontade triunfante de um sujeito ou de um objeto. Pois, em verdade, se fosse assim, todos os que passam anos em cursos de pintura se tornariam exímios pintores. Não há fórmula nem cartilha. O que possibilita a obra é o saber ver que conduz a mão do pintor para longe de onde ele gostaria de ir. É o saber ouvir o canto da Musa, útero do mundo, que o conduz ao primeiro momento do que já não lembramos mais. Ser educador é estar constantemente lançado em uma tela misteriosa e nevoada, onde, em seu interior branco, concentra todas as cores. O segredo está em termos a sabedoria de distingui-las, ou seja, coparticipar do processo de iridescimento a que cada um está convocado.

Educar é criar...

E não se limita aos muros e grades escolares. Criar é deixar ser aquilo que se é no vigor do desconhecido. É reconhecer na autocriação um caminho possível. Criar é estar sendo aluno com o aluno. É compreender que a construção é mútua, recíproca, mas indefinível. É ousar ir na contracorrente do social do qual fazemos parte, ainda que não saibamos aonde iremos chegar.
Criar é fazer acontecer as palavras e os números em nosso corpo. É sermos capazes de ver a cor das cores, sem atribuições adjetivas ou conceituações prévias. É pensintir que somos as palavras, os números e as cores do mundo junto com outras palavras, números e cores. É ter coragem de admitir que o mundo não é nosso, e muito menos a vida, mas que a partir deles somos possibilidade para a possibilidade (Fogel, 2009, p. 41).
Criar é gestar no sentido materno do termo. É deixar brotar e florescer de si para si. É acontecer como gesto – leite – alimento da, na e para a vida. Criar é educar o homem para o humano e o humano para o real. “Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade” (Lispector, 1998, p. 21). Realidade é criação, algo que, por mais que teorizemos, jamais conseguiremos explicar. Realidade é a semente na terra e seu destino. É a emoção de ser criação com a criação. Realidade é a exatidão do que não podemos objetivar. Realidade é criar e educar, tessitura dançante de água, ar, fogo e terra... Vida que não vemos a olhos nus.
Educar para o real ou sua realidade significa, então, convocar para o confluir. Irromper com o mundo que somos desde o útero, atentos, contudo, às categorizações e aos modelos, os quais tenderemos a seguir. Com isso, educar para o real não significa empreender uma revolução a fim de transformar o social que já se tem, mas regar as sementes que ainda estão por vir. É saber re-conhecer que
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver
[...] gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena (Pessoa, 2007, p. 48-9).
Sendo assim, educar é uma iniciação ao mistério. De mãos dadas, educadores e educandos caminham entre as flores do conhecimento. Os dedos apontados são a acontecência do mundo no exato momento em que o vemos. É preciso, contudo, estar atento, pois em cada uma das flores há serpentes que, ao picar, liberam o veneno do “conhecimento absoluto”, que nos condiciona a ver o mundo sempre da mesma maneira. Tal veneno nos enfraquece a capacidade de pensar e sentir e nos faz acreditar nas abstrações simbólicas que tentam representar, a saber, substituir a vida com suas falsas ideias. Assim, o conhecer que poderia ser um belo caminho rumo à sabedoria transforma-se num “nunca ter visto pela primeira vez, e nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar” (Pessoa, 2007, p. 105).
A sala de aula é como uma sala de cirurgia. Ora acontecem partos, ora transplantes, ora desobstrução dos vasos sanguíneos... A diferença consiste na morte. Quando um médico perde um paciente por algum motivo, não há retorno, e o que se presencia é a falência do corpo, que culmina na irreversibilidade da morte que o “retira” da vida. Na sala de aula, os procedimentos realizados de forma errada – na maioria das vezes oriunda da falta de compromisso com o fazer educativo, que não se restringe apenas à atuação docente – induzem os educandos ao que chamo de “coma existencial” ou “viver póstumo”.
Atualmente a sociedade está repleta de pessoas vivendo assim. É como se suas vidas não fizessem sentido e o que realmente desejam ficasse abafado pelas mãos que os modelam feito massa, a fim de transformá-las nos simulacros das vidas que já se foram. Esse quadro justifica a falta de interesse de alunos e professores pela escola. É desesperador passar horas de nossos dias falando e ouvindo coisas que não nos fazem sentido algum.
Criar é educar para e na cidadania, e isso não significa domesticar para a decodificação adequada de letras, números ou segredos das provas de vestibulares, mas orientarmo-nos, educadores e educandos, na leitura de nossas vidas. Cidadania não deveria ser associada à obrigatoriedade de voto, por exemplo, mas à oportunidade e à liberdade de percebermos criticamente o que somos ou podemos ser e nossa posição em face do mundo.
Educar e criar é saber reconhecer que cada um de nós, educadores e educandos, somos uma nota musical, uma palavra em poesia, gotas de chuva no oceano. Sendo assim, cabe a cada um de nós pensar muito bem na música, na poesia e no oceano que pretendemos compor, tecer e mergulhar no decorrer de nossas vidas.

Referências bibliográficas:

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: Cortez, 1980.
CORTELLA, M. S. Conhecimento escolar: epistemologia e política. In: CORTELLA, M. S. A escola e o conhecimento. São Paulo: Cortez, 2002.
FOGEL, Gilvan. Notas sobre o corpo. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Arte: corpo, mundo e Terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro: obra poética II. Porto Alegre: L&PM, 2007.
Publicado em 06 de julho de 2010

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